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terça-feira, 19 de abril de 2016

O processo de destituição de Dilma Rousseff não resolve nenhuma das crises do país Otros - Editorial do EL PAÍS

A aprovação da abertura de processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff por uma esmagadora maioria da Câmara dos Deputados abre uma etapa no Brasil marcada pela incerteza. A agonia à espera da presidenta nas próximas semanas para acabar previsivelmente saindo derrotada e humilhada pela porta de trás da história não resolve nenhuma das incógnitas que se observam sobre o futuro do gigante sul-americano. O impeachment deixa um país dividido politicamente, em lados conflitantes socialmente e imerso na pior crise econômica de sua história. Também em uma crise moral à qual somente o proverbial otimismo dos brasileiros poderá dar solução.
A confluência dos interesses de Temer com outros dois personagens de seu próprio partido – Eduardo Cunha, presidente da Câmara de Deputados, o evangélico conspirador do impeachment, acusado pelo Ministério Público de possuir milionárias contas na Suíça alimentadas com subornos da Petrobras, e Renan Calheiros, presidente do Senado, um artista da hipocrisia política também investigado por corrupção – deu motivos aos seguidores do Partido dos Trabalhadores (PT) para considerar todo o processo “um golpe de Estado constitucional” para desalojar a esquerda do poder.O Brasil entra em uma transição às cegas cuja primeira parada será o Senado, quando, ainda no início de maio, decidir sobre o caso Rousseff. Bastará uma fácil maioria simples para que a presidenta seja afastada do poder por até 180 dias enquanto é julgada em ambas as Casas. Se, como previsível, for decretada sua morte política, o poder passará ao vice-presidente, Michel Temer, seu antigo aliado e agora o pior inimigo, dirigente do conservador Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) e sob suspeita de corrupção. Um personagem obscuro a quem os mercados pedem uma dura política de ajuste e uma reforma tributária: provavelmente necessárias, mas com certeza impopulares.
Golpe ou mudança de rumo ante circunstâncias de extrema gravidade econômica – como defendem os partidários do impeachment –, dois fatos são inquestionáveis: ocaso Petrobras expôs uma corrupção gigantesca na classe política brasileira que afeta todos os partidos, esquerda e direita, sem distinção; e, até agora, a única não acusada de enriquecimento pessoal foi a própria presidenta. Ao fim e ao cabo, o impeachment se baseia em um tecnicismo fiscal: a prática ilegal de recorrer a empréstimos de bancos públicos para equilibrar o orçamento.
O Brasil fica em um limbo político às vésperas dos Jogos Olímpicos do Rio, inquietado pela necessidade de dar resposta à recessão e encontrar uma saída à crise política. A destituição de Rousseff não deve deter a limpeza dos esgotos do poder. Mas muito menos propiciar – como se viu no domingo, com o lamentável espetáculo oferecido pelos deputados na votação, onde não faltaram gritos, empurrões, cantorias e até uma cuspida – que a democracia brasileira saia desse transe debilitada.

UM DISCURSO COERENTE - Por Nelson Mateus

O discurso mais coerente e esclarecedor do que está em JOGO nessa manobra política que está sendo articulada sob o disfarce de impeachment.
"Não é o parlamentarismo que escolhe quem governa o país." São as urnas. E até que se prove que a presente Dilma cometeu crime de responsabilidade, minha posição é e se manterá contra o impeachment.
Somos uma democracia. Não votei neste atual governo. E nem o considero a nossa melhor opção [afinal, não há opções]. Mas a tentativa de retirar uma presidente eleita que não é acusada de nada, isso é um golpe, sim, contra do Estado de Direito, contra o plebiscito realizado em 1993 sobre a forma de governo do Brasil.
O comunismo nunca exitiu em nosso país. Não há espaço para comunismo e democracia. Isso é impossível. A presidente Dilma, apesar dos absurdos de muitos dos seus pronunciamentos, nunca fez menção sobre a implantação da política e da ideologia comunista em nosso país. Mais uma vez o boato do comunismo chega ao Brasil como numa conspiração.
Apoiar minorias, facilitar o ingresso à universidades, facilitar o egresso ao mercado de trabalho, e outros, é de longe a dívida social marcada em nossa história de preconceitos, segregação e discriminação. Ser gay, negro, mulher se tornou declaradamente mais fácil no Brasil dos últimos anos.
Porém, repito, não apóio o atual governo. Não concordo com sua política econômica.
Infelizmente [ou felizmente], estamos passando por um período delicado. Não sei se é difícil. Com certeza, esta exposição toda, este desmacarar que está acontecendo e ainda acontecerá mais, só mostra o quanto somos ignorantes, o quanto ainda somos massa de manobra, o quanto precisamos ser mais responsáveis e cautelosos.

segunda-feira, 18 de abril de 2016

Um golpe parlamentar e a volta reacionária da religião, da família, de Deus e contra a corrupção - Por Leonardo Boff


Observando o comportamento dos parlamentares nos três dias em que discutiram a admissibilidade do impedimento da presidenta Dilma Rousseff parecia-nos ver criançolas se divertindo num jardim da infância. Gritarias por todo canto. Coros recitando seus mantras contra ou a favor do impedimento. Alguns vinham fantasiados com os símbolos de suas causas. Pessoas vestidas com a bandeira nacional como se estivessem num dia de carnaval. Placas com seus slogans repetitivos. Enfim, um espetáculo indigno de pessoas decentes de quem se esperaria um mínimo de seriedade. Chegou-se a fazer até um bolão de apostas como se fora um jogo do bicho ou de futebol.
Mas o que mais causou estranheza foi a figura do presidente da Câmara que presidiu a sessão, o deputado Eduardo Cunha. Ele vem acusado de muitos crimes e é réu pelo Supremo Tribunal Federal: um gangster julgando uma mulher decente contra a qual ninguém ousou lhe atribuir qualquer crime.
Precisamos questionar a responsabilidade do Supremo Tribunal Federal por ter permitido esse ato que nos envergonhou nacional e internacionalmente a ponto de o New York Times de 15 de abril escrever: “Ela não roubou nada, mas está sendo julgada por uma quadrilha de ladrões”. Que interesse secreto alimenta a Suprema Corte face a tão escandalosa omissão? Recusamos a idéia de que esteja participando de alguma conspiração.
Ocorreu na declaração de voto algo absolutamente desviante. Tratava-se de julgar se a presidenta havia cometido um crime de irresponsabilidade fiscal junto a outros manejos administrativos das finanças, base jurídica para um processo político de impedimento que implica destituir a presidenta de seu cargo, conseguido pelo voto popular majoritário. Grande parte dos deputados sequer se referiu a essa base jurídica, as famosas pedaladas fiscais etc. Ao invés de se ater juridicamente ao eventual crime, deram asas à politização da insatisfação generalizada que corre pela sociedade em razão da crise econômica, do desemprego e da corrupção na Petrobrás. Essa insatisfação pode representar um erro político da presidenta mas não configura um crime.
Como num ritornello, a grande maioria se concentrou na corrupção e nos efeitos negativos da crise. Apostrofaram hipocritamente o governo de corrupto quando sabemos que um grande número de deputados está indiciado em crimes de corrupção. Boa parte deles se elegeu com dinheiro da corrupção política, sustentada pelas empresas. Generalizando, com honrosas exceções, os deputados não representam os interesses coletivos mas aqueles das empresas que lhes financiaram as campanhas.
Importa notar um fato preocupante: emergiu novamente como um espantalho a velha campanha que reforçou o golpe militar de 1964: as marchas da religião, da família, de Deus e contra a corrupção. Dezenas de parlamentares da bancada evangélica claramente fizeram discursos de tom religioso e invocando o nome de de Deus. E todos, sem exceção, votaram pelo impedimento. Poucas vezes se ofendeu tanto o segundo mandamento da lei de Deus que proibe usar o santo nome de Deus em vão. Grande parte dos parlamentares de forma puerial dedicavam seu voto à família, à esposa, à avó, aos filhos e aos netos, citando seus nomes, numa espetacularização da política de reles banalidade. Ao contrario, aqueles contra o impedimento argumentavam e mostravam um comportamento decente.
Fez-se um julgamento apenas politico sem embasamento jurídico convicente, o que fere o preceito constitucional. O que ocorreu foi um golpe parlamentar inaceitável.
Os votos contra o impedimento não foram suficientes. Todos saimos diminuidos como nação e envergonhados dos representantes do povo que, na verdade, não o representam nem pretendem mudar as regras do jogo político.
Agora nos resta esperar a racionalidade do Senado que irá analisar a validade ou não dos argumentos jurídicos, base para um julgamento político acerca de um eventual crime de responsabilidade, negado por notáveis juristas do país.
Talvez não tenhamos ainda suficientemente amadurecido como povo para poder realizar uma democracia digna deste nome: a tradução para o campo da politica da soberania popular.

quarta-feira, 6 de abril de 2016

Nietzsche e a tragédia humana - por Alfredo Carneiro

Nietzsche e a tragédia humana

Até a Grécia antiga anterior a Sócrates, o homem tinha uma relação íntima com a natureza. Os deuses representavam as mais altas (e as mais baixas) qualidades humanas. Os homens se identificavam com os deuses e suas ações visavam a plenitude da existência. Para Nietzsche, a vida é “vontade de potência”, que é o desejo de viver de forma plena e vigorosa, por isso o filósofo alemão considerava a perspectiva dos antigos algo mais próximo de uma vida plena e carregada de significados. Os antigos mesclavam a realidade ao mito, a existência aos mais profundos anseios inconscientes.

Essa aproximação do homem com a natureza e o mito Nietzsche chamava de  relação entre o apolíneo com o dionisíaco, que dava ao homem a noção de pertencimento à ordem perfeita da natureza. Mas, após Sócrates e Platão, as investigações filosóficas se voltaram para um “além-mundo” e iniciaram a “despotencialização” do homem, que passa a depositar suas esperanças não mais nessa vida, mas em uma vida “espiritual” depois dessa vida. A realidade passa a  não ter mais sentido em si mesma e o homem perde sua dimensão mítica e começa a tornar-se fraco e ressentido.  A realidade, para Platão, é apenas uma “sombra do mundo perfeito” conforme está claro no Mito da Caverna. Para Nietzsche, esse é o início da tragédia humana.

Na era medieval essa visão platônica se acentua e o cristianismo se instala, fundando a Europa cristã. Agostinho, irá retomar as ideias de Platão e fundar uma doutrina cristã de enfraquecimento. O homem já nasce pecador e miserável e somente o Deus cristão poderia “perdoá-lo” e “salvá-lo”. Tal é a ideia do “pecado original” de Agostinho que o cristianismo adotou como oficial.


A humildade e a humilhação passam a ser valorizadas e esse mundo torna-se um lugar não apenas imperfeito, mas também de castigo e sofrimento. O orgulho e a altivez são vistos como pecados. O deuses antigos são transformados em demônios “pagãos” e associados com o mal que leva o homem ao inferno. Agora o homem não é apenas fraco, é também assustado, paranoico, e diviniza as mais baixas qualidades humanas. O homem forte, vigoroso e orgulhoso tornou-se “mau” e “condenado”, e o fraco que sempre ressentiu-se da superioridade do forte passou a ser “bom”.
Se na era medieval a questão de Deus era o ponto central, na era moderna ocorre uma transição, uma passagem da visão cristã para uma nova percepção do mundo e do homem, não mais como um ser criado por Deus, mas dono de si que a tudo investiga com a razão e a experimentação. O Renascimento, que marcou o início da modernidade, foi definido pelo uso da razão, pela negação da visão medieval e pelo surgimento de um novo Deus: a ciência.
A modernidade pretendia emancipar o homem, mas conseguiu dessacralizar mais ainda o mundo e não deu nada em troca, a não ser a crueza de uma vida sem encantos ou significados. A revolução industrial deu origem à grande massa humana, a multidão que se desloca diariamente de suas casas para as fábricas e escritórios em busca de objetivos mesquinhos, lutando por uma vida superficial de pequenos prazeres.  As eras medieval e moderna transformaram todos os homens em iguais, promovendo a normalização da natureza humana.
Na modernidade o  diferente  é perseguido e criticado, pois tudo tem de ser de acordo com normas e costumes niveladores. Nietzsche pela primeira vez identifica esse comportamento afetado e paranoico com o ressentimento, que é a inveja que o fraco tem do forte e do diferente. Tal pensamento totalmente original irá inspirar Freud na criação da teoria do inconsciente.
Para Nietzsche a era moderna criou uma expectativa desmedida e ingênua, baseada na razão e na ciência, que tirou do homem sua profundidade“Deus está morto” é uma crítica à própria filosofia de seu tempo, influenciada por Descartes, pai da filosofia moderna que colocou o homem (o “eu”) no centro da investigação filosófica e definiu a natureza como um mecanismo sem mistérios.
Nietzsche afirma então que o homem moderno não sabe mais para o que se voltar. A filosofia ocidental e a modernidade falharam em dar um significado à vida. O que morreu foi nossa dimensão divina, nossa vontade de viver plenamente e nosso heroísmo, nos tornando animais de rebanho, ovelhas, seres pequenos, egoístas, covardes e assustados.  O único mérito que o homem moderno tem é o fato de sua tragédia ser apenas uma transição para o além do homem, que será o momento que o homem vai se desfazer de toda essa baixeza e viver sua vida de forma autêntica, original e plena. Assim falava Friedrich Nietzsche, assim falava Zaratustra.